segunda-feira, 5 de março de 2012

Ex-traficante usa dificuldades pessoais para ajudar os outros no tratamento de vícios

O norte-americano Antonio Lambert, um ex-presidiário que venceu sua batalha contra o vício das drogas e da violência, e, agora, auxilia pessoas na mesma situação
O gosto da cocaína e a sensação de câmera lenta de burlar a lei eram bem familiares, mas a diversão tinha acabado fazia tempo. Antonio Lambert não era mais um jovem de gangue, mas um homem de família com uma carreira, e lá estava ele no último outono, alto como qualquer usuário das ruas, entrando no seu escritório escondido às nove da noite, procurando – o que, exatamente? Ele não sabia ao certo.
Ele saiu do prédio levando alguns celulares (que jogou fora) e uma sensação de que estava escorregando, caindo de novo dentro de um buraco. Ele andou na escuridão, andou sem destino, e então começou a fazer o que ensinou a outros em circunstâncias
emelhantes: parar, enfrentar o problema, e se reerguer.
"Eu comecei a falar comigo mesmo, em voz alta: esta é uma das minhas estratégias para lidar com isso, e um dos motivos pelos quais eu recaí foi que eu esqueci de usá-la", disse Lambert, 41, educador em saúde mental que tem um diagnóstico de distúrbio de humor e drogadicção, um dos mais assustadores da psiquiatria.

Ele mandou uma mensagem de texto para um amigo, alguém que conhecia sua história e poderia ajudá-lo a sair daquela situação. E deu entrada num hospital.
"Eu sei quando é hora de buscar ajuda."
O sistema de saúde mental há muito tempo usa pares (pessoas que passaram pela mesma situação) como conselheiros e esta prática tem sido controversa, em parte porque os médicos e assistentes sociais questionaram sua eficácia. Mas pesquisas recentes sugerem que o apoio de pessoas na mesma situação pode reduzir os custos, e em 2007, funcionários federais de saúde determinaram que os estados poderiam cobrar por esses serviços pelo Medicaid – se o estado tivesse um sistema para treinar e certificar pares.

Desde então, "o apoio de pares cresceu vertiginosamente; eu estou nesse campo há 25 anos, e nunca vi nada acontecer tão rápido", disse Larry Davidson, pesquisador de saúde mental em Yale. "Os pares são uma prova viva, respirando, de que a recuperação é possível, de que ela é real."
A prova A é Lambert, um ex-condenado autodidata que está se tornando um reconhecido treinador de pares, dando aulas em Delaware e por todo o país. Ele é um entre um pequeno grupo de pessoas que escolheu contar publicamente como é difícil administrar um diagnóstico duplo severo, incluindo as recaídas que costumam acontecer nesse caso.
"Ele é um exemplo extremo de quanta diferença a paixão e o compromisso podem fazer, levando em conta tudo o que passou", diz Steve Harrington, diretor-executivo da Associação Nacional de pares Especialistas, um grupo dedicado a promover o apoio entre pares na saúde mental.
Lambert, que saiu de um buraco profundo com a ajuda da fé religiosa, medicação e suas próprias formas de autoexpressão, descreve a situação assim: "há muitas pessoas lidando com doenças mentais, drogas, abandono, abuso, e elas não sabem que há uma saída. Eu não sabia. Eu não sabia."
Bean Bean na Cidade Aranha
Sua avó foi a primeira pessoa a chamá-lo de Bean Bean, e o menino era tão magro que não conseguiu se livrar do apelido.
Ele também não conseguia evitar os meninos mais velhos e fortes em Brighton, Portsmouth (Virgínia), e passou parte de sua vida escolar apanhando. Brighton era assim naquela época, e pelo menos essas brigas ensinaram-lhe habilidades de sobrevivência. Nem tudo foi aprendizado: ele foi abusado sexualmente aos 6 anos, por um menino mais velho do bairro – de forma brutal.
Ele não tinha para quem contar, mesmo que soubesse o que dizer. Sua mãe e pai estavam separados, vivendo a quarteirões de distância, ambos figuras constantes na vida social do bairro, nas festas nas casas, frequentadores de lojas de bebidas, jogos de cartas e outras atrações. Sua mãe, chamada Chucky, estava quase sempre fora, e às vezes deixava o menino na casa de uma amiga por "algumas horas" que se transformavam num final de semana inteiro. Durante a maior parte do tempo, ele esperava na porta.

Ele idolatrava o pai, um motorista de caminhão e funcionário de depósito que vivia perto, mas também passava seu tempo livre fora de casa, bebendo e jogando cartas.
"Naquela época eu era alcoólatra, mas eu saía e tentava encontrá-lo quando sabia que ele estava fora", disse o pai, Edward Lambert, numa entrevista recente em sua casa em Brighton. Ele largou a bebida há alguns anos por causa da Igreja, e pai e filho eventualmente se aproximaram.
Mas só depois que o filho começou a marcar território nas ruas, ficando conhecido como um bandido bem sucedido aos 12 anos, uma presença frequente no Palmer´s Corner, lar dos machos alfa pesos-pesados de Brighton – Cidade Aranha, como eles a chamavam. Ele logo entrou nas drogas, primeiro como entregador e depois como traficante local, armado e muito perigoso. Ele começou a usar cada vez mais cocaína, crack de vez em quando, e logo adquiriu outra característica.
"Nós víamos a loucura como uma qualidade estimada, algo a ser admirado, como os brancos admiram a coragem", escreveu Nathan McCall em "Makes Me Wanna Holler", seu livro de memórias de 1994 sobre sua juventude em Portsmouth. "Na verdade, no nosso jeito de pensar, a loucura e a coragem eram a mesma coisa."
O garoto magro cresceu, forte e louco o suficiente para circular com sua bicicleta com uma metralhadora serrada no guidão, parar em frente a um grupo de traficantes e jogar uma sacola vazia no chão na frente deles, com essas instruções: encham isso. Agora.

"Eu atirava com a arma para o ar para mostrar que eu estava falando sério, então pegava as drogas e ia até o próximo grupo de traficantes, e deixava tudo ali", dizia ele. Nessa época, ele era calouro do segundo grau.
Ninguém que estava lá esqueceu isso.
"Chegou ao ponto em que as pessoas, especialmente os traficantes, vigiavam a rua para ver se Bean Bean estava chegando, da mesma forma que vigiam a polícia", disse Henry Maurice Hunt, meio-irmão e colega de armas da época em que ainda vivia no bairro. "Se eles viam Bean chegando na rua, iam embora."
Aquilo não tinha como durar, e não durou. Ele sobreviveu a vários tiroteios, levou uma bala atrás da orelha uma vez (ela ainda está lá), e em outro sofreu uma emboscada por trás e foi atingido nas pernas, braços e na pélvis; essas balas foram todas removidas sem nenhum dano mais grave, exceto pelas cicatrizes proeminentes. Mas a polícia estava atrás dele, e em 1991, aos 21 anos, ele foi para a prisão, condenado a 22 anos por agressão com arma e outras acusações, de acordo com os registros do tribunal de Portsmouth.
Ele não foi um prisioneiro modelo no início. Incitou um protesto numa instituição, depois do qual os guardas o confinaram a uma cela de "segregação", longe dos outros prisioneiros, por quase dois anos. Ele começou a ler lá, a Enciclopédia Britânica, depois Robert Ludlum, James Clavell, Sun Tzu, qualquer coisa que encontrasse.
A curiosidade nutria uma ambição que foi crescendo até que um dia, em 2002, se transformou em convicção.
"Um jovem bandido que eu conhecia do bairro chegou, no primeiro dia de uma sentença de prisão perpétua, colocou as mãos para o alto e disse: ´Ei, cara, estou aqui` – como se estivesse chegando numa festa", disse Lambert. "Aquilo foi o bastante. Eu sabia que precisava sair de lá e ter uma vida, alguma coisa. Eu não sabia o quê, nem como."
Vivendo a sua história
Ele recebeu ajuda, e ela veio na hora certa e de uma fonte inesperada.
Era junho de 2003, e Lambert estava fora da prisão (por bom comportamento) e morando em Virginia Beach, perto de casa, mas não muito. Casado e com filhas, ele estava se tornando particularmente habilidoso na colocação de pisos. Sua vida parecia estar tomando forma, se não ainda uma direção.
Mas as horas de trabalho eram longas, o dinheiro era curto, e uma briga com sua mulher abriu um poço de ressentimento e desespero que parecia não ter fim. Na prisão, ele se lembra, um médico deu-lhe o diagnóstico de depressão e o medicou. Mas o remédio não tinha efeito para ele, e ele decidiu que aquilo era bobagem; que ele conseguia lidar bem consigo mesmo.
E foi então que ele caiu novamente nas ruas de Brighton, dormindo em apartamentos de amigos e se sentindo perdido, instável e desesperado por sua droga favorita. O gosto de metal da cocaína era irresistível, e pelo menos segurava a depressão. Mas seu humor voltava a ficar sombrio, e ele tinha que se drogar de novo.

É assim que quase sempre acontece com quem tem um diagnóstico duplo de adicção e distúrbio de humor, dizem os médicos: um problema inflama o outro, num ciclo que é extremamente difícil de quebrar.
Mas ele logo quebrou, deixando 55 gramas de cocaína e sua pistola na casa de seu meio-irmão numa manhã e indo embora. Por volta das seis da tarde, ele estava indo em direção à Rodovia George Washington, sentindo-se de certa forma com menos esperança do que atrás das grades – quando seu celular tocou. Era sua mãe que agora morava na Califórnia, e ela tinha acabado de ver algo na TV: uma propaganda para o Desafio Adolescente EUA, um programa de recuperação cristão.
Ela deu o número de telefone para ele. Ele anotou, sentou na frente de uma casa e pensou sobre aquilo por um bom tempo, e então telefonou. O homem do outro lado ouviu e ofereceu a isenção da taxa se o jovem se entregasse a Deus. Ele fez o compromisso naquela manhã e desde então costuma ir regularmente à igreja.
"Eu honestamente acredito que a prisão o tirou das ruas antes que ele morresse", disse seu pai, "e Deus fez o resto."
Ele concluiu o programa, em Greensboro, Carolina do Norte, e logo encontrou um emprego num depósito de lá, começando como trabalhador temporário e avançando até assistente de gerente de distribuição. Ele estava limpo, a família estava intacta e, de acordo com seus registros médicos, um terapeuta local prescreveu-lhe lítio, um tratamento padrão para distúrbios de humor severos.

Foi um amigo da igreja que falou para ele sobre o trabalho de apoio, mostrando-lhe um anúncio de pares especialistas numa clínica de saúde mental local, a Envisions of Life, e ele agarrou a chance, aceitando uma redução de salário em troca de alguns casos.
"Ele pegava os piores casos; tinha que ir para essas áreas cheias de gangues, lugares em que ninguém mais ia", disse Sue Bethune, sua chefe na época, que agora é consultora de saúde mental em Greensboro. "Ele de fato abriu as portas para o programa poder mandar pessoas para lá."
O trabalho era exaustivo, e o deixava perigosamente perto de traficantes de cocaína (por isso a recaída, que resultou em acusações por delitos), e as relações em casa ficaram mais uma vez muito desgastadas. Ele começou a pensar mais alto: em treinar pares. Em 2007, ele foi a uma palestra de treinamento de Harrington, o diretor-executivo e fundador da associação de pares.
"Ele fez muitas perguntas que faziam refletir bastante", disse Harrington, hoje estudante de pós-doutorado na Universidade de Boston, numa entrevista. "Quando eu ouvi mais sobre sua história, disse a ele: ´olhe, você pode fazer o que eu faço`."
Eles continuaram em contato, e logo Harrington telefonou para dizer que tinha agendado para Lambert fazer um discurso "de tom" num evento em Michigan. Ele embarcou num avião em Greensboro, sem saber no que estava entrando.
"Eu nem sabia o que ´de tom` significava", disse ele. "achei que eu teria que cantar."
A história tomou vida própria, e as pessoas no público que temiam por seus entes queridos com problemas semelhantes queriam ouvir mais. Pais de todas as classes sociais, médicos, clérigos e colegas de trabalho o puxaram de lado para ver se ele poderia falar com um filho problemático, ou uma filha viciada. Ele se juntou a Harrington para abrir uma empresa, a Recover Resources, que vende manuais para programas de apoio, DVDs e outros materiais educativos. Uma sessão de treinamento em junho, realizada no Centro Psiquiátrico Delaware e conduzida por Lambert, mudou a vida de pelo menos dois dos presentes.
Um era um veterano da marinha de Newark, Delaware, que também tinha problemas com abuso de substâncias e um diagnóstico psiquiátrico.
"Eu soube desde o início que era alguém importante para mim", disse o veterano, Justin Thompson, 28, que desde então concluiu sua certificação de conselheiro sob a supervisão de Lambert e agora trabalha como ex-paciente especialista. Os dois se tornaram amigos próximos. "Eu me identifiquei com ele de cara, com sua paixão, sua história, a energia positiva que ele traz – tudo isso."
Outra foi June Benson, uma mãe solteira de três filhos que teve seus problemas com a lei e uso de drogas. Os dois sentiram uma conexão instantânea e começaram a se falar regularmente por telefone (Lambert estava passando por uma separação na época e está em contato constante com seus próprios filhos.).

"Ele me contou tudo; eram telefonemas caros", disse Benson. "Mas para sair de tudo aqui e ser o homem que ele é hoje, é um milagre."
Ele logo foi contratado pela Clínica Psiquiátrica de Delaware para fornecer serviços de apoio de pares no hospital e começou a falar com a Horizon House/Delaware, uma clínica em Wilmington, para montar uma faculdade para treinar pares especialistas.
Lambert e Benson foram morar juntos em julho e estão noivos.
"Você precisa entender, para mim, agora, o que eu passei, às vezes é difícil acreditar que tudo isso é real", disse Lambert. "Mas eu sei que minha doença mental e meu vício são reais; sinto que eles estão aí nesse momento, exercitando-se, preparando-se para me pegar de novo. É por isso que eu tenho todo o meu sistema para permanecer forte."
O dia-a-dia
Esse sistema é baseado no monitoramento estrito de seus humores, que respondem apenas em parte à medicação. Ele inclui falar consigo mesmo, normalmente no carro ou entre consultas ("Se o carro for parar na parte errada da cidade, eu cairei de novo"); e mímica, que ele faz com um grupo e individualmente, normalmente nas igrejas, com maquiagem, longas túnicas e acompanhamento gospel.
Mas quando Lambert sente que sua mente está naufragando rápido, ele precisa de companhia, normalmente a de Benson ou Thompson.

Ele sente que ele mesmo precisa de um conselheiro, alguém com uma história e que sabe como é – de dentro – ter dificuldades mentais, estar com problemas sérios, e se sentir sem nenhuma opção. Alguém que possa ser um defensor, um companheiro, que possa compartilhar sua história: que possa simplesmente estar ali, é tudo o que é necessário.
Pesquisadores de saúde mental testaram o efeito dos pares numa variedade de contextos durante a última década. Quando eles são “especializados” - ou seja, sua história é semelhante à de seus clientes, da forma como Lambert e outros ensinam – os pares tendem a reduzir a taxa de hospitalizações psiquiátricas e, quando apropriado, aumentam o uso de programas como o Alcóolicos Anônimos.
No fim, não é pelo dinheiro. Em suas viagens como treinador e conselheiro, Lambert leu poemas dos clientes, acompanhou eles nas compras, e às vezes sentou e assistiu um episódio de sua novela favorita. E ele assumiu Thompson como um protegido, um treinador de conselheiros em treinamento.
Para ambos, significa estar a serviços, para seus alunos e um para o outro. Numa manhã de sábado recente, Lambert estava em casa sozinho, assistindo futebol, quando sentiu um pulsar daquela mesma escuridão e exaustão que o levou à última recaída.

"Eu chamo isso de monstro", diz ele. "Eu estava deitado no sofá e, depois de um tempo, o futebol é que estava me assistindo."
Ele telefonou para Thompson, que correu para lá com um par de varas de pescar. Os dois pescaram naquela tarde. Pescaram e fumara e não falaram sobre muita coisa, e nenhum deles pode dizer exatamente quando foi que aconteceu. O monstro tinha ido embora.


Tradução: Eloise De Vylder
Fontes:
UNIAD - Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas

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